Abusada na infância, Bruna guardou por anos um monstro adormecido que foi acordado e eliminado quando ela resolveu quebrar o silêncio por amor a seu filho.
por Carolina Padrão
Imagine a cena. Uma linda menininha de apenas 3 aninhos de idade, de pele branquinha e bochechas rosadas, cabelinho castanho escuro, usando um lindo vestidinho branco curtinho, quase com a calcinha aparecendo, brincando no cantinho do portão de sua casa com dois amiguinhos…
Esta é a cena mais marcante de que Bruna consegue se lembrar de sua infância. À primeira vista parece uma cena perfeita, inocente e comum, como qualquer outra cena da infância de muitas crianças, se não fosse pelo fato de que a garotinha estava com dois “coleguinhas”, um de 11 anos e outro de 13 anos e eles a faziam abaixar a calcinha até a metade das perninhas e “brincavam” com ela de uma brincadeira proibida e secreta. “ Eram dois meninos. Um ficava na minha frente e outro atrás. Eles abaixavam a minha calcinha dizendo que a gente ia brincar, que era uma brincadeira diferente e que se no final desse tudo certo, eu ia ganhar um bombom. Eles abaixavam suas roupas e um ficava se masturbando na frente e outro atrás de mim. Chegava a ter penetração mas não era profunda, porque eles eram maiores do que eu e tinham quem me levantar” lembra Bruna.
Acontecia várias vezes ao dia, quase que diariamente e os garotos diziam à pequena Bruna que a culpa era dela, pois ela que havia pedido que “brincassem”, que ela que queria. “E eu não entendia, porque uma brincadeira, que eu achava que era para ser divertida, já que brincadeira é pra ser gostosa, de uma hora para outra ficava estranha, pois eu não podia contar pra ninguém. Era uma brincadeira que era também um segredo. Eu não podia contar para minha mãe nem para meu pai. Era uma brincadeira secreta e que no final envolvia muita culpa, o que me confundia, porque eu não sabia se era mesmo brincadeira ou se era uma coisa errada”, explica Bruna.
E a cena que sempre se repetia na cabeça de Bruna era a da menininha de vestidinho branco com a calcinha abaixada. Ela se lembrava sempre da mesma cena, como se o mesmo dia se repetisse constantemente em sua mente. Bruna acredita que este tenha sido o dia que mais a marcou, pois:
“foi o dia que me falaram pela primeira vez que a culpa era minha. Que eu que queria fazer aquilo. Lembro-me que chorei muito, pois foi a partir desse dia que descobri que a culpa era minha, eu ficava triste porque eu não podia contar pra minha mãe”.
E essa situação se repetiu por muito tempo sem que ninguém percebesse nada. Dos 3 aos 7 anos de idade a pequena Bruna sofria abusos sexuais diários, e até mesmo mais de uma vez por dia, dependendo da vontade dos meninos. “Falavam-me que minha mãe ia me bater, que eu ia levar uma surra, que eu ia apanhar e aí eu nunca contava, isso, aliado ao fato de não discernir direito se o que acontecia era certo ou errado por causa da idade, eu não sabia o que fazer” conta a jovem.
E para piorar a situação, os abusadores parecem sempre seguirem um padrão e assim, os meninos acabaram contando o que faziam com Bruna a um rapaz de 16 anos que por sua vez contou para um de 25 anos e ambos tentaram fazer o mesmo com a garotinha, mas, já naquele tempo, Deus cuidava dela e já via sua luta, então os rapazes não conseguiram fazer nada, mas a situação com os meninos continuou.
Numa tarde, uma Senhora passava pelo local, percebeu que algo estranho estava acontecendo. Então ela se aproximou bem devagar do portão e pegou os meninos em flagrante. Quando ela os viu, os garotos vestiram a calça e saíram correndo e a garotinha ficou paradinha no mesmo lugar, com a calcinha abaixada e chorando.
“Recordo-me de que a mulher, que era uma amiga da família, levantou minha calcinha, tentou me acalmar e começou a perguntar algumas coisas, pra saber a quanto tempo aquilo acontecia, mas fiquei com medo e saí correndo para me esconder dentro de casa” relembra Bruna emocionada. Ela foi atrás de mim e imediatamente contou à minha mãe o que tinha visto. Minha mãe, por sua vez, ficou atordoada, desesperada mesmo e tentou tirar da minha boca a quanto tempo isto estava acontecendo” conta.
Logo o pai de Bruna foi informado do acontecido e tomou providências imediatas, fazendo com que os abusos parassem. Assim, como todos pensavam que com o fim dos abusos, a situação estava resolvida, o assunto ficou enterrado por muitos anos. Ninguém mais falou nada. Não se podia tocar no assunto. E tudo ficou enterrado por quase 30 anos.
Os abusos pararam, mas as raízes do pegado já estavam firmes no coração da garota, e mesmo que ninguém mais tocasse no assunto, a menininha de vestido branco não saía de sua cabeça. “Eu comecei a criar dentro de mim um monstro que acabou adormecendo. Eu ficava pensando, remoendo isso dentro de mim e surgiram bloqueios emocionais muito grandes. O que aconteceu comprometeu minha identidade, gerando dentre outros graves problemas, um grande complexo de inferioridade. Eu sempre achava que as pessoas estavam me apontando, sempre achava que as pessoas se aproximavam de mim por interesse sexual. Que os namorados que eu tinha só queriam isso. Eu não me achava capaz de despertar amor nas pessoas, eu achava que todos os meus namorados só queriam sexo” explica Bruna.
O amor entre homem e mulher foi apresentado à Bruna através de um abuso sexual, então pra ela, amor estava totalmente ligado a sexo. “Eu fazia de tudo para ser amada, topava tudo. Meus namoros sempre foram impuros. Casei-me virgem por misericórdia de Deus”. Mas mesmo tanta dor não impediu a jovem de buscar a Deus. Do seu jeito, com as condições e conhecimentos que tinha na época, Bruna buscou a Deus nas mais variadas religiões e graças à insistência de uma pastora amiga da família, e lá, numa igreja evangélica ela encontrou Jesus. O Pastor perguntou se tinha alguém que queria aceitar Jesus para sempre e ela foi a primeira a se posicionar. O namorado da jovem na época, insatisfeito com o acontecido, pediu que ela escolhesse entre ele e Deus e nesse momento ela fez a escolha mais acertada de sua vida. Escolheu Deus e seu sim pra Deus a livrou de tudo que o diabo tinha preparado para ela. E foi ainda através desse sim para Deus que Bruna conheceu seu marido.
“Mergulhei de cabeça na fé. Comecei a me introduzir nos ministérios da igreja, visita, evangelismo, e eu só tinha 15 anos. Tudo que eu podia entrar, eu entrava. Mergulhei mesmo. Mas tive muitas decepções na igreja. Comecei a perceber partidarismo, e a igreja não tinha um discipulado e acabei me desviando e voltei a buscar o amor dos homens em namoros. Fiquei desviada por 4 meses e acabei me reconciliando com Deus depois de ouvir uma profecia feita pelo meu futuro marido que eu nem mesmo conhecia. Fiquei tão impactada que continuei na igreja. Acabei conversando, orando e namorando com o Thales, mas não foi um namoro santo e sim na carne, e isso durou até que nos casamos” conta Bruna.
Quando aconteceu o casamento, o monstro que estava adormecido começou a dar sinais de vida. Bruna já não gostava mais de ser tocada, não gostava de ter relação sexual. Tudo era por obrigação. Ela não gostava de nada que tinha haver com sua área sexual e isso começou a comprometer a saúde do casamento e promover distanciamento e ela, em nenhum momento, conseguiu relacionar a sua frieza com os abusos sofridos na infância. Ela se achava frígida, não via a ligação. Por outro lado, Thales aguentava toda a situação calado. “A gente não sabia onde buscar ajuda. Eu não sabia se eu estava endemoniada, se eu procurava uma psicóloga, se eu buscava libertação… eu não entendia o que acontecia, não tinha com quem falar e o Thales buscava ajuda na oração e fomos postergando a situação por longos 8 anos até que eu engravidei” explica Bruna.
O casamento era do jovem casal era normal fora do quarto. Dentro do quarto era tudo difícil. “Nossos momentos à sós eram desgastantes. Todas as vezes que eu tinha que ter relação sexual com ele, eu só me lembrava da menina com vestido branco e com a calcinha abaixada. Eu não conseguia ver o meu marido, eu sempre via os meus abusadores. Eu não conseguia ter relação sexual, porque pra mim era uma coisa suja, eu não conseguia ver o sexo fora das paredes do abuso. Mas eu não tinha coragem de contar pra ninguém, nem pro meu marido. Ele não sabia de nada e sempre achava que eu precisava de ajuda mas não sabia como ajudar. Ele sempre achava que eu o estava rejeitando, que não o amava, mas não era nada disso. A igreja não pode curar, a unção não cura, é preciso mais do que isso. É preciso uma atitude da parte da vítima, nesse caso o perdão. Mesmo já sendo pastora e fazendo efetivamente a obra de Deus, sendo salva e vivendo na igreja, a cura ainda não havia acontecido. É possível ser salvo, estar na igreja e não ser curado.”
Quando Bruna engravidou, já havia uns seis meses que não tinham relação sexual, e foi aí que o mostro acordou. Eles ficaram toda a gravidez sem terem relação sexual e um bom tempo depois do parto também. Foi quando, assistindo um culto pela TV, Bruna ouviu um testemunho que mudou tudo o que ela pensava. Nesse testemunho, a moça falava da necessidade de se quebrar heranças espirituais que são passadas de geração em geração. A jovem que contava a história tinha recebido uma herança espiritual de sua avó e precisava que isso fosse quebrado para que conseguisse ter uma vida normal e um casamento sadio, sem que as maldições continuassem sendo repassadas. Quando Bruna ouviu isso, foi como um estalo. Imediatamente o Espírito Santo de Deus falou ao seu coração: “Você também precisa se libertar. Você precisa contar ao seu marido tudo que aconteceu com você. Se você não resolver essa situação em sua vida, tudo isso pode acontecer com seu filho também.”. Bruna entrou em pânico. Como ela poderia deixar que seu filho que ainda nem havia nascido, sofresse tanto quanto ela sofreu, se o poder de impedir isso estava em suas mãos? Então, o amor que sentia pelo filho a fez resolver quebrar o silêncio.
“Preparei um dia inteiro pra contar. Lembro que chorei muito e só consegui contar quase meia noite. Eu chorava muito, mas ele me olhou com um olhar tão doce, com tanta misericórdia, com tanto amor, ele me abraçou e colocou a mão na minha barriga e orou rejeitando tudo. Eu sempre me achava suja, me achava uma vagabunda e aí ele entendeu que eu não estava rejeitando ele e sim me rejeitando” conta.
Bruna achou que só o fato de contar ao marido já seria o suficiente para que ela fosse curada, mas o Espírito Santo lhe disse que isso seria o início. Depois que contou ao marido, as coisas ficaram ainda mais difíceis e a jovem passou a ser atormentada dia e noite. “Eu já não conseguia nem olhar para o meu marido” conta. Ela começou a fugir dele. Ela já era pastora, já era salva, mas não era curada. Bruna tentava uma reaproximação, mas não conseguia chegar ao fim. Então, num dia de grande desespero, ela recebeu a ligação de sua pastora Ale Lapa, do MEVAM Itajaí, que perguntou se estava tudo bem. Foi a chance que Bruna esperava e ela se agarrou a ela com todas as forças. Ela revelou à pastora que não estava bem e desabou. Disse que iria se separar, porque seu marido era um homem maravilhoso e que merecia uma esposa inteira, e contou tudo à pastora. Neste momento, a pastora de Bruna falou com ela sobre Marlise Lamb, uma jovem senhora que também tinha passado por tudo aquilo, mas que hoje estava curada e dedicava sua vida a ajudar outras pessoas a serem curadas e transformadas por Deus. A Pastora sugeriu a eles que a trouxessem a Sete Lagoas para um seminário de cura e libertação. “Eu achei que isso não adiantaria nada, que não tinha jeito para o meu caso, mas concordei. O Thales não mediu esforços para trazê-la para cá. Ela ministrou a cura na minha vida. Eu não entendia porque Deus havia permitido tudo aquilo e ela explicou que não era a vontade Dele e sim o livre arbítrio do homem que havia sido culpado por tudo. Ela me mostrou que Jesus sempre esteve ali comigo, sentindo toda a minha dor. Ele promoveu um caminho de cura pra mim. Fiz um processo de cura e ela ministrou libertação na minha vida. Ela ministrou perdão pra mim e para os meus abusadores e aí eu consegui ver a verdade da situação. A cura e o perdão fizeram com que eu pudesse ver da forma que realmente foi. Eu era uma criança que precisava ser protegida e que eu não era culpada. Só quando consegui me libertar, quando verdadeiramente perdoei é que fiquei livre.”.
Perguntada sobre o futuro, Bruna responde que pretende usar tudo que Deus fez em sua vida para ajudar outras pessoas a também serem curadas.
“Vamos criar o Grupo de Apoio Quebrando o Silêncio aqui em Sete Lagoas. Será um grupo de grupo de apoio para pessoas que foram abusadas. Hoje não me considero mais a menininha do vestido. Hoje sou uma mulher feliz que tem uma vida tranquila, cheia de paz, feliz e com sonhos. Meu casamento foi restaurado. Hoje quando sou tocada, me sinto amada e não abusada. Sinto-me especial e não uma vagabunda, me sinto uma esposa e não uma abusada. A Deus eu declaro toda a minha gratidão por me fazer vencer todas as pressões emocionais que o abuso me causou colocando em meu caminho pessoas que me ajudaram a quebrar o meu silêncio , a me introduzirem ao caminho do perdão e a viver de maneira feliz nessa terra cumprindo o chamado para o pastoreio totalmente livre.”,
finaliza Bruna com os olhos marejados de lágrimas e um sorriso que só quem está realmente liberta pode dar.