Quando a mágoa, a dor, e as cicatrizes são grandes demais, somente o perdão verdadeiro pode trazer cura e libertação.
por Camila Couy
Esta é a primeira vez que conto este testemunho. Desde a gravidez, nada em minha vida foi fácil. Meus pais já tinham dois filhos e não queriam mais uma criança. Nasci numa família com ateus, católicos, espiritas e cristãos. Cresci me envolvendo com o espiritismo. Tinha muitas visões. Ainda assim, tive uma infância normal. O início da minha adolescência também foi normal. Na verdade era bem recatada. Saía, passeava, me divertia, mas não fazia nada que pudesse ser um problema. Até que um dia, eu e minha prima fomos passar o carnaval em Ouro preto. Pela primeira vez, bebi, fumei, pulei… Sentia-me livre. Sentei-me em um bar e de repente apareceu um homem dizendo que vendia versos de amor e vendo que eu me interessei, me deu um livrinho dizendo que ali estava escrito sobre o maior amor do mundo. Curiosa, fui ler. Era o amor de Jesus. Ele me pegou de jeito. Fiquei sem reação. Não entendia como ali, em pleno carnaval, Deus mandaria alguém me falar Dele… Só sei que não consegui mais ficar naquele lugar. Sentia vergonha de estar ali e fui embora.
Daí em diante, Deus sempre usava pessoas para falar comigo do amor Dele. Uma amiga me convidou para conhecer sua igreja e aceitei Jesus lá. Procurei uma igreja e comecei a congregar, mas houve uma grande guerra espiritual. Comecei a entender que as coisas que eu via eram demônios. Minha família não entendeu e não aprovou minha conversão. Mas eu queria Jesus. Aos 15 anos usava vestido e combinação, roupas da minha avó. Nunca havia tido um namorado e minha entrega ao Senhor foi por inteiro. Até que um dia, o diabo tramou contra minha vida e usou um de meus líderes para executar seu plano.
Em minha igreja, as reuniões entre a liderança e os membros eram comuns, como na maioria das igrejas, então, quando meu líder me ligou e informou o local e horário de uma reunião, fui sem a menor preocupação. Quando cheguei ao local marcado, uma rua sem muito movimento, vi que ele já estava lá e me aproximei. Assim que cheguei perto, ele começou a falar. Disse que estava apaixonado por mim e que não conseguia mais se conter, me agarrou ali mesmo no meio da rua e abusou sexualmente de mim. Não tive reação. Nem mesmo chorei. Eu sonhava com meu casamento, minha lua de mel, e justamente a pessoa que deveria cuidar de mim e me instruir, destruiu os meus sonhos, me matou por dentro. E quando tudo terminou, ele me deixou ali sozinha.
Eu era quase uma criança, sozinha, assustada e com medo. Então comecei a andar sem rumo, tentando não pensar em nada. Como seria minha vida? Quem acreditaria em uma menina, recém-convertida? Cheguei em casa e tomei um banho. Queria tirar toda a sujeira do meu corpo e chorei muito. Só me lembro de dizer “Senhor… Senhor…”. Eu gemi e gemi por anos sozinha. Orava para que minha família se convertesse. Achava que não podia atrapalhar o agir de Deus na vida deles, então continuei frequentando a mesma igreja, mas não era mais eu lá, e sim um pedaço de carne, sem sentimento, sem agir de Deus. Pouco a pouco, minha fé foi esfriando e não conseguia mais falar com Deus. Meu líder agia normalmente, como se nada houvesse acontecido. Fui levando a vida assim até que não aguentei e voltei para o mundo cheia de ódio.
Desviei-me totalmente dos caminhos do Senhor. Estava decidida a nunca mais deixar um homem me tocar. Encontrei vários falsos amigos. Drogas, vícios… e não falava mais com Deus. Mas por mais que eu tentasse negar sua existência, Ele se fazia presente. Muitas vezes pensei em me matar, cheguei a tentar uma vez, tomando vários remédios e veneno de rato. Enquanto sentia meu corpo desfalecendo, podia ouvir gargalhadas do diabo, então comecei a clamar e a pedir perdão a Deus e o Senhor me livrou. Ele tinha planos pra minha vida e nada aconteceu comigo.
Tempos depois, uma amiga me pediu para acompanha-la em um culto de sua igreja. Já haviam se passado anos sem colocar o pé em uma igreja evangélica. Não sei por que, não consegui dizer não, mas me sentia péssima lá dentro. Suava, tinha náuseas, calafrios. De repente, o louvor começou a cantar o hino “Há esperança para o ferido” e eu senti que o Senhor falava diretamente ao meu coração. E assim, depois de anos, eu disse novamente: “Paizinho, eu preciso de ti”. Eu não me prostrei de joelhos, eu caí no chão. Eu gritei, eu gemi, eu clamei. Eu pedia: “Deus, arranque esta dor de dentro de mim” e então entendi que Deus estava ali, só esperando que eu pedisse, para que Ele pudesse agir. Daquele dia em diante, não me afastei mais da presença Dele. E a vida começou a tomar um novo rumo.
Pouco depois comecei a trabalhar na política. Apresentaram-me a meu chefe e logo de cara eu o odiei. Era um homem cordial, atencioso, educado, não só comigo, mas com toda a equipe. Não sabia explicar, só sei que sentia raiva dele cada vez que me tratava bem. Com o tempo entendi que não era raiva dele e sim de todos os homens. Mas aquele rapaz era diferente. Ele se preocupava comigo e de certa forma, cuidava de mim, então, percebi que na verdade eu tinha medo do sentimento que acabei descobrindo que nascera por ele. Ele era cristão e aos poucos, soube ganhar meu coração e dois anos e pouco depois de nos conhecermos, nos casamos. Começava uma nova vida. Mas os carrapichos da minha vida antiga ainda precisavam ser tirados e o Senhor cobriu meu marido de sabedoria e amor e foi usando-o para trabalhar minha cura.
Na nossa lua de mel chorei por três dias. Não conseguia me entregar. Na verdade, não conseguia nem tirar o vestido de noiva, tamanho era o medo que sentia. E este medo durou ainda muito tempo. Mas para aquele homem, abri meu coração e ele teve toda a paciência do mundo comigo. Esperou até que eu estivesse pronta e me amou. Começamos a fazer planos. Pensávamos em sair do país e fazer a obra de Deus juntos, até que meu marido recebeu o convite para pregar em uma cidadezinha do interior e no final da pregação me disse: “meu sonho era morar no interior e cuidar de uma igreja assim”. Eu não gostei, queria sair do país, mas os planos de Deus eram diferentes dos meus e em seis meses estávamos morando naquela cidadezinha, já como pastores auxiliares daquela igreja.
Não foi fácil voltar para a igreja e mais difícil ainda me tornar pastora. Não era o que eu queria, mas resolvi, mais uma vez, entregar-me totalmente a Deus e ouvi claramente dele: “Filha, eu estava lá quando tudo aconteceu. Eu não planejei aquilo para a sua vida e você não estava sozinha. Eu vi tudo. Mesmo você não me vendo ou me sentindo naquele momento, eu estava lá cuidando de você. Não deixei o diabo tocar na sua vida. Muitos têm brincado com minha obra e meu nome, mas te guardei até aqui filha, porque quero através de você, ensinar outros com sua dor. Quero que você cuide verdadeiramente do meu rebanho. Falharam com você. Não falhe com os outros. Abusaram de você, não abuse dos outros. Não souberam te amar, ame e faça a diferença”. Não pude dizer não.
Foram seis anos naquela missão. Aos poucos, o Senhor foi mandando as ovelhas e um trabalho maravilhoso começou ali. Nossa casa era uma extensão da igreja e servíamos com alegria. Naquela cidadezinha recebi uma das notícias mais felizes da minha vida, eu estava grávida. Meu sonho sempre havia sido constituir uma família e agora ele se tornava real. Mas ao mesmo tempo em que estava feliz com a gravidez, comecei a sentir uma grande opressão. Durante um culto, um homem ficou possesso e deu uma grande gargalhada. Imediatamente senti um frio na alma e uma dor insuportável. Corremos para o hospital. O médico me examinou e disse que estava tudo bem, que eu só precisava de repouso, mas eu sentia que tinha algo errado. Passei a noite no hospital e meu marido Reginaldo voltou para o culto. Eu ouvia gargalhadas e vozes dizendo que meu filho iria morrer. Comecei a sentir contrações e quando meu marido chegou novamente ao hospital, tive um aborto espontâneo. A dor espiritual era maior que a dor física e assim, voltamos a Belo Horizonte para que eu pudesse passar um tempo com minha família, mas durante a viagem, eu continuava ouvindo as risadas até que não aguentei e pedi ao meu marido que parasse o carro. Então, peguei minha bíblia e disse em voz alta: “Diabo, ouça isto. ‘Ainda que a figueira não floresça nem haja fruto na vide, o produto da oliveira minta, eu Camila, me alegrarei no Senhor, no Deus da minha salvação’. Habacuque 3.17-18-19”.
Quando voltei, abrimos uma casa de apoio onde mães carentes deixavam seus filhos para poderem trabalhar. Chegamos a cuidar de 28 crianças, com a ajuda de voluntários. Para mim que havia perdido um filho era muito difícil cuidar dos filhos dos outros. Eu os amava, mas doía muito. Um dia notei que uma criança de cerca de dois anos recém-chegada, era diferente das outras. Seu semblante era sério. Quase não conversava, mas chamava minha atenção de uma forma inexplicável, seu olhar para mim era de amor. Um dia chamou-me e pediu que o fizesse dormir. Eu fiz e enquanto cochilava, pegou minhas mãos e colocou sobre sua cabeça pedindo para fazer carinho. Quando acordou, ele me deu um beijo e me chamou de mãe. Pensei que estava ouvindo vozes, mas não, ele repetiu: “Mamãe”. Eu perguntei: “Você me chamou de mãe?” e “ele respondeu: Sim, você quer ser minha mãe, tia Camila?” Naquele dia eu comecei a gerar aquele menino, o Adrian. Aquela palavra me tocou profundamente e eu o amei com todas as minhas forças. A mãe do menino tinha pouquíssima renda, vivia da ajuda de outros e cuidava sozinha de quatro crianças. Vendo meu amor explicito pelo seu filho, chegou à minha casa e em lágrimas perguntou se eu poderia cuidar dele. Ela nos levou ao conselho tutelar nos dando a responsabilidade de cuidar e educar o Adrian, deixando-o conosco. Ele não nasceu de mim, mas nasceu para mim.
Mas as feridas espirituais não podem ser apenas tratadas, elas precisam ser curadas. Assim, com tanta coisa acontecendo, fui ficando doente emocionalmente. Com a mente doente, também adoeci fisicamente. Perdi o cabelo, emagreci 20 quilos em menos de dois meses, não saía da cama, apenas chorava. Um dia meu marido me disse para arrumar as malas que me levaria para viajar, mas não me deu nenhum detalhe. Ele me levou a um congresso de pastores e líderes em outro estado. E para tornar as coisas ainda mais difíceis, a preletora era uma menina de 17 anos. Não acreditava que havia saído de Belo Horizonte para ouvir uma criança. Ela começou a ministrar sobre o vaso, como ele é feito, formado. Falou do vaso nas mãos do oleiro. Enquanto ela explicava sobre o processo do vaso, Deus ia falando comigo e trazendo à minha memória todo sofrimento, toda dor, todo pecado, toda ferida, enfim, todo meu passado. E Deus me dizia: “Não faça um memorial do seu passado. Você não é uma coitada. Você é forte, é guerreira e está na hora de começar a ser usada. Use toda sua experiência para abençoar outras pessoas. Reaja filha minha, eu te capacitei e Eu não desperdiço nada. Cada vitória ou derrota Eu usarei para glorificar o Meu nome”. Então indaguei: “Senhor, será que estou pronta? ”e Ele me disse: “Falta um detalhe. Perdão”.
Eu havia entendido. O Senhor queria que eu perdoasse o meu abusador. Dei um grito. “Ele não merece o meu perdão”. Achava que ele não era digno de perdão, mas Deus me mostrou que afinal, ninguém é. Deus me disse que se eu quisesse ser livre, curada, restaurada, precisava perdoar. O Senhor me mandou começar abrindo minha boca e dizendo que eu queria perdoar, mas eu não queria. E Ele então, calmamente me ensinou que eu não precisava mentir, bastava abrir o coração e dizer o que estava dentro dele. E assim eu fiz. Projetei a imagem do abusador em minha frente e como em um diálogo disse: “Você me tocou como não deveria tocar, fez o que não era de direito seu fazer. Você feriu não apenas meu corpo, mas minha alma, e eu estive morta por muitos anos por sua causa. Eu, Camila, não quero te perdoar, mas para que eu seja liberta eu preciso liberar o perdão. Eu te perdoo mesmo em meio à dor. Te perdoo para que Deus também me perdoe. Eu preciso ter um coração perdoador”. Falei com muita dor, mas naquele momento eu decidi perdoar e senti como se muitas correntes tivessem se quebrando. Minha mudança de vida começou ali naquela igreja, onde naquele mesmo dia me levantei e dei meu testemunho de libertação. Ali mesmo vidas me procuraram para compartilhar que tinham vivido coisas semelhantes e então compreendi que através do testemunho poderia ajudar outras pessoas. Voltei para casa uma nova pessoa.
Hoje estamos na Igreja Batista Getsêmani onde trabalho com o ministério de libras. Achei na vida dos pastores Jorge Linhares e Glenda Linhares o respeito e o amor que eu pensava não existir mais. Quero dizer a você, que precisa perdoar que o faça, ainda que você seja a vítima. Não espere o outro te pedir perdão. Fui abusada, mas Deus me mostrou que todos somos falhos e que o único perfeito e Jesus Cristo e que é preciso que coloquemos nossa confiança apenas nele, pois assim, nossa fé nunca será abalada. Que Deus te abençoe.